Você deve ter reparado — ao menos que more em outro planeta — a enorme popularização da cultura coreana que atingiu o mundo em diversas áreas nos últimos anos. É k-pop pra lá, k-drama pra cá, e ainda tem k-fashion, k-beauty, k-food, entre outros termos que começam com a letra K. Tudo por causa da tal Onda Coreana (ou Hallyu, para os mais íntimos), fenômeno que se refere à proliferação da cultura pop da Coreia do Sul ao redor do mundo.
Dentre todas essas tendências do país, estão também os webtoons, formato de quadrinhos disponibilizados na internet (web + cartoon!) que, caso você ainda não tenha reparado, dá nome a este portal. 😁
“Beleza, entendi. Mas como surgiram? Quais as principais características desse formato? Não tem webcomic também?!” As respostas para estas e outras perguntas você vê agora no Globo Repórter aqui neste post, vem com a gente:
Origem: censura e reinvenção do mercado
A origem dos webtoons na Coreia do Sul possui um contexto histórico pra lá de complexo, pois, antes de alcançarem a popularidade que têm hoje, as histórias em quadrinhos no país passaram por censura, crise no mercado editorial e uma reformulação completa do mercado.
Os primeiros indícios de censura de quadrinhos na Coreia surgiram durante a ocupação japonesa no país (1910-1945), quando as publicações eram severamente controladas, e durante a Guerra da Coreia nos anos 50, com o formato sendo utilizado principalmente para propaganda política.
A partir da década de 1960, essa censura se intensificou, com a criação de um comitê de ética que impôs restrições rigorosas sobre conteúdo considerado sensacionalista ou violento. Essa repressão levou ao fechamento de cerca de 19 editoras(!) nos anos 80, o que impactou significativamente na diversidade e na quantidade de obras disponíveis. Além disso, a censura resultou numa espécie de “demonização” da mídia no país ao longo dos anos, pois boa parte do público e do governo passou a considerar os quadrinhos uma má influência aos jovens.
• Dica de leitura 👉 Saving children from ‘unhealthy’ comics in the 1960s and 1970s – TheKoreaTimes
Por isso que, mesmo após a poeira baixar a partir dos anos 90, com o relaxamento da legislação, os quadrinhos ainda eram vistos na Coreia como um produto de baixa relevância cultural e o setor não teve investimento ou incentivo, ficando estagnado por anos.
Foi só ali nos anos 2000, com a ascensão da internet, que os quadrinhos coreanos começaram a se recuperar. Os autores passaram a publicar suas histórias direto na web e de forma gratuita, já que não imaginavam que outras pessoas pagariam para ler suas obras. Foi assim que começaram a surgir, então, os webtoons, que se tornaram uma alternativa popular aos manhwas tradicionais.
Webtoon? Webcomic? Manhwa? QUÊ?!
Calma, como em todo artigo de palestrinha e contexto histórico, são muitos termos para dar conta e às vezes as coisas podem ficar confusas. Então, vamos dar uma breve pausa para explicar tudo certinho:
Primeiro de tudo, manhwa (만화) é a palavra coreana para “quadrinho”. Tanto a palavra em coreano quanto os termos em japonês, mangá (漫画), e chinês, manhua (漫畫), são derivados de 漫画 — 漫 (man), que significa improviso, e 画 (hua), que pode ser traduzido como imagem ou pintura. Logo, manhwa é simplesmente o termo usado para classificar qualquer quadrinho criado por autores (escritores e ilustradores) coreanos, seja digital ou no formato físico tradicional.
Já webcomic, embora seja um termo muito parecido a webtoon, é muito mais abrangente, podendo englobar mais formatos, histórias e tipos de conteúdo. Em essência, webcomics são histórias em quadrinhos publicadas na internet (em um site, blog, aplicativo, rede social, etc). Não há necessidade de uma editora ou curadoria, assim como não há limitação de gênero, estilo artístico e/ou formato, podendo aparecer como uma HQ convencional ou apresentar apenas um painel de cada vez. Scott McCloud, em Reinventando os Quadrinhos, deu início à ideia dos quadros infinitos (ou tela infinita) que a web proporciona aos quadrinistas, além de explorar as possibilidades que o ambiente digital oferece.
Por sua vez, os webtoons podem ser considerados uma subcategoria de webcomics. Porém, como Heekyoung Cho define no artigo do The Comics Journal, The Webtoon: A New Form for Graphic Narrative (vale a leitura!), o conceito de ambos tem sua grande distinção a partir de duas principais características dos webtoons: layout vertical e transmidialidade.
A leitura em rolagem vertical de um webtoon, além de ser desenvolvida tendo em mente a experiência do leitor em navegadores ou aplicativos de celular, segundo Cho, permite que o leitor tenha uma experiência única em relação ao tempo e espaço da trama. Por exemplo, um painel vertical extremamente longo entrega uma sensibilidade de tempo e espaço que não pode ser expressa em quadrinhos impressos por causa do formato e o alto número de páginas que seriam utilizados. Veja o exemplo abaixo do webtoon A Country Pumpkin, de Yun T’aeho:
• Fica a curiosidade 👉 Em 2002, Pape Popo Memories, de Sim Seung-hyun, foi o primeiro webtoon nessa estrutura de rolagem vertical, naquela época pensado especialmente para navegadores. O estilo se popularizou em 2003, com o sucesso do webtoon Love Story, de Kang Full.
Além disso, por ter a possibilidade de utilizar diversas plataformas para contar uma história, os universos dos webtoons às vezes vão além das páginas dos quadrinhos. Alguns títulos apresentam trechos com trilha sonora ou pequenas animações no meio dos capítulos, ampliando a imersão do leitor no mundo. Grupos de k-pop como BTS, TOMORROW X TOGETHER, ENHYPEN, NCT e Le Sserafim também possuem webtoons próprios que exploram o universo dos clipes e conteúdos de cada um, em um formato transmídia de narrativa.
Por fim, Heekyoung Cho ainda aponta que os webtoons, além de terem um estilo específico baseado no layout vertical e na transmidialidade, também se definem por conta de uma forma específica de produção, distribuição e circulação de histórias em quadrinhos, que inclui plataformas web/mobile, plataforma para amadores, distribuição gratuita (apesar de isso estar mudando) e comunicação ativa entre leitores e criadores.
Dominação mundial!
Os webtoons rapidamente se popularizaram na Coreia. Com o crescente interesse do público e o alto número de acessos nas páginas de publicação das obras, entre 2003 e 2004, os dois principais buscadores do país, Daum e Naver, incorporaram uma sessão exclusiva de webtoons em seus portais de busca e, posteriormente, ambas as empresas investiriam em plataformas e aplicativos próprios para o formato.
O movimento de dominação mundial recebeu grande contribuição em 2014, quando a Naver passou a traduzir oficialmente parte dos seus títulos para o inglês, dando a possibilidade de fãs de outros países consumirem essas histórias diretamente da plataforma Naver Webtoon (internacionalmente, o app é chamado apenas de WEBTOON). Posteriormente, a empresa incluiu o tailandês, espanhol, alemão, francês, entre outras línguas. O português do Brasil ainda não é uma opção oficial da plataforma.
As adaptações dos webtoons para outras mídias, como filmes, dramas, animes e games, também ajudaram a impulsionar o interesse do público nessas publicações. A primeira adaptação para o cinema foi em 2006, com Apt, dirigido por Ahn Byeong-ki e baseado no webtoon Apartment, de Kang Full (o mesmo autor de Love Story). Atualmente, grandes produções de sucesso foram baseadas em webtoon, como Love Alarm (2019), Beleza Verdadeira (2020), Itaewon Class (2020), Tower of God (2020), D.P Dog Day (2021), Sweet Home (2021) e All of Us Are Dead (2022).
Uma pesquisa conduzida pelo Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia e pelo Instituto de Promoção do Intercâmbio Cultural da Coreia entrevistou 25 mil pessoas de 26 países, incluindo o Brasil 💚💛💙, entre novembro e dezembro de 2023, e os resultados dão dimensão da popularidade do formato no mundo. Segundo o estudo, os webtoons representam 28,65% do consumo total de produtos culturais da Coreia. O número é o mesmo da indústria de beleza coreana e supera outras categorias populares, como dramas e programas de variedades:
Ainda de acordo com a pesquisa, no Brasil, 31,3% dos consumidores de K-content afirmaram ler webtoons regularmente, sendo a Naver Webtoon a principal plataforma de acesso com 53,5% de participação — outras plataformas apresentam 48,2%. O gasto médio mensal com webtoons por usuários brasileiros foi de 14%.
Tá, mas ONDE eu consigo ler?
A Naver Webtoon, lançada internacionalmente como LINE Webtoon ou simplesmente WEBTOON, é uma das plataformas mais populares para leitura de webtoons, oferecendo uma vasta coleção de histórias de artistas de todo o mundo. A plataforma é gratuita, mas possui um sistema chamado “fast pass”, que permite acesso antecipado a capítulos mediante pagamento. Tapas, TappyToon, POCKET COMICS e Manta Comics são algumas das outras opções de leitura, com conteúdos gratuitos e pagos.
No Brasil, a plataforma FunkToon é referência quando o assunto é quadrinhos digitais nacionais, enquanto editoras como NewPOP, JBC e Suma (Companhia das Letras) publicam grandes sucessos do universo webtoon que foram adaptados para a mídia impressa, como Lore Olympus, Navillera, The Hellbound e Cósmico.