⚠️ ATENÇÃO: Este texto aborda tópicos sensíveis como estupro
A Naver Webtoon, maior plataforma de webtoons da Coreia, está enfrentando reações negativas relacionadas a uma obra com conteúdo misógino e discriminatório disponível em seu catálogo, o que levou a críticas e pedidos de boicote por parte do público.
Tudo começou quando Another World Pong Pong Man, um webtoon que retrata um homem descobrindo a infidelidade de sua esposa, passou na triagem inicial do Naver Webtoon’s 2024 Global Webtoon Contest.
A trama apresenta as mulheres sob uma ótica depreciativa, descrevendo-as como manipuladoras e enganosas. Disputas legais que surgem em casamentos e divórcios são retratadas na história de maneira que demonizam as mulheres coreanas, enquadrando os homens como vítimas unilaterais da lei e do sistema.
A polêmica, aliás, se inicia já no título do webtoon, pongpongnam, derivado de um termo misógino — em tradução para o português, ficaria como “homem lavador de louças”, sendo que Pong Pong faz referência à uma marca de detergente coreana. A palavra costuma se referir a homens que se casam com mulheres com passado “promíscuo”, sendo os responsáveis por “limpar o passado delas” e serve não apenas para atacar mulheres, mas também homens que aceitam passar por situações do tipo. A origem da expressão é ainda mais violenta, pois está atrelada a atos de estupro coletivo, mais especificamente ao homem que assume a última rodada da agressão sexual e acaba sendo responsável por “limpar” a vítima após o ato.
Boicote: apelo internacional e deboche da Naver
Com a situação, mulheres coreanas organizaram um boicote à plataforma, que consiste basicamente em não comprar mais no app da Naver Webtoon, evitar menções à marca/plataforma (não fazer propaganda gratuita) e buscar outras maneiras para ler os webtoons do catálogo da empresa. Foi feito também um apelo para que o público internacional se junte ao movimento, pois, segundo elas, quando se trata de pautas do gênero, que repercutem mais no exterior do que na Coreia do Sul, a Naver já demonstrou se movimentar rapidamente, assim que a controvérsia impacta leitores estrangeiros.
Na última quarta-feira (16), o movimento se intensificou. Isto porque o perfil oficial da Naver Webtoon no X (ex-twitter) fez um post para promover a obra Childhood Friend Complex (Eunhi) com a frase “Estou boicotando o meu complexo de amigo de infância” (tradução livre). A publicação foi imediatamente percebida como um deboche direto ao boicote à plataforma e apagada pouco depois.
Nesta segunda (21), a Naver emitiu uma nota, também pelo X, justificando o ocorrido e se desculpando pela publicação anterior. Leia abaixo a tradução:
“Olá. Aqui é a Naver Webtoon.
Sentimos muito pelo comunicado tardio.
Contaremos a história do post referente à campanha de boicote em nossa conta oficial no dia 16/10.
O tweet foi postado antes do recente movimento de boicote.
É um material que foi produzido e usado para o marketing da obra em 10 de setembro.
Por engano na operação da campanha publicitária, o tweet foi copiado e republicado como um novo, e a exposição aumentou temporariamente, e o material foi excluído assim que foi descoberto.
Internamente, reorganizamos o processo de inspeção e publicação de material de marketing para evitar que aconteça novamente.
Pedimos sinceras desculpas a todos que se sentiram incomodados, incluindo o autor da obra que pode ter tido problemas devido a este assunto.
Obrigado.“
Além disso, vieram à tona posts de funcionários da Naver debochando do boicote no Blind, rede social de fóruns e comunidades anônimas. Os usuários do Blind são agrupados por tópicos, empresa onde trabalham e setor, e a rede social verifica se as pessoas realmente trabalham numa empresa através de seus e-mails de trabalho. Ou seja, você só posta em determinado fórum, se for comprovadamente um funcionário daquela empresa em questão.
Enquanto uma parcela de usuários ridicularizava o movimento contra a Naver com comentários irônicos como “O boicote começou, mas não mudou nada” e “Uma salva de palmas para a pessoa responsável!”, outros lamentavam a situação. A parcela maldosa dos comentários, porém, reforçou o sentimento negativo dos usuários da plataforma em relação à empresa.
A misoginia na Coreia do Sul
Com o incidente, surge novamente a necessidade de debater a misoginia na Coreia do Sul, um problema cujos dados e ocorrências vêm sendo destacados há anos no país. Em um estudo realizado pelo governo sul-coreano em 2015, por exemplo, 80% das pessoas entrevistadas — a grande maioria das quais eram mulheres — relataram ter sido sexualmente abusadas no seu local de trabalho.
Além disso, as mulheres constituem mais da metade das vítimas de homicídios reportadas na Coreia do Sul, uma das mais altas taxas do mundo. Segundo a Procuradoria Suprema da Coreia do Sul, 90% das vítimas de crimes violentos em 2019 eram mulheres, um aumento significativo de 71% em relação a dados do ano 2000.
Os crimes sexuais também se intensificaram com a internet. Homens instalam câmaras de espionagem em casas de banho públicas, vestiários, lojas e metrô para filmar mulheres sem consentimento, distribuindo os vídeos online posteriormente. Menos de 4% dos processos contra crimes sexuais no país envolvia filmagens ilegais em 2008, mas o número aumentou para 20% em 2017. Com a inteligência artificial, o problema evoluiu ainda mais e, em 2024, as mulheres coreanas também são vítimas de deepfake, tendo seus rostos utilizados em vídeos pornográficos criados com IA.
Segundo a professora Katharine H.S. Moon em artigo no EAF, homens jovens têm sido os principais difusores da misoginia e discurso de ódio contra as mulheres no país. Cerca de 76% dos homens coreanos na faixa dos 20 anos se opõem ao feminismo (em contraste, 64% das mulheres da mesma idade apoiam o movimento). Eles culpam as mulheres e o movimento feminista pelas suas dificuldades econômicas e sociais. Alguns destes homens formam a base da extrema direita na Coreia do Sul, marcando a bandeira conservadora contra mulheres, imigrantes, minorias sexuais e pessoas com deficiência.
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O problema, obviamente, impacta a indústria de webtoons. Casos de assédio sexual, disparidade salarial entre escritores homens e mulheres, ataques à artistas mulheres promovidos por grupos de incels e até censura de conteúdo classificado como “ofensivo aos homens” fazem parte da realidade das criadoras. Além disso, quando empresas, como neste caso da Naver Webtoon, são criticadas pelo público, a ala feminina de usuários afirma existir uma nítida diferença de tratamento para as reclamações vindas do público masculino, com as demandas feitas pelas mulheres sendo constantemente ignoradas.
Com exceção da nota referente à polêmica do deboche em um post do X citada anteriormente, a Naver Webtoon não se posicionou acerca do boicote até o momento. Another World Pong Pong Man segue no catálogo da plataforma e também como participante do Naver Webtoon’s 2024 Global Webtoon Contest.