Crítica: Light Shop: Entre a Vida e a Morte (2024)

Kang Full parte do horror e do suspense para tratar de feridas abertas da Coreia do Sul

O gênero do horror é um prato cheio para abordar traumas e situações mal resolvidas, seja num âmbito individual dos personagens ou algo mais referente ao coletivo/social. São diversos exemplos da cultura pop que partem do gênero a fim de explorar as mais diversas angústias do ser humano, o que foi, com o passar do tempo, transformando os monstros clássicos e criaturas assustadoras em catalisadores de nossos sentimentos. Light Shop: Entre a Vida e a Morte, nova série do Disney+, se apropria dessas dinâmicas para impulsionar sua linha melodramática e redimir seus personagens, sem esquecer as feridas ainda abertas da Coreia do Sul.

A obra do lendário autor de webtoons Kang Full tem como cenário principal um bairro com becos escuros, cuja única fonte de luz é a loja de iluminação de Jung Won-young (Ju Ji-hoon). Neste contexto, acompanhamos um grupo diverso de pessoas: temos a estudante que se sente deixada de lado pelas amigas (Shin Eun-soo), o policial que se afunda no trabalho para esquecer dos problemas (Bae Seongwoo), o casal sáfico com receio de ser julgado pela sociedade (Kim Min-ha e Kim Sun-hoa), entre outros. Paralelamente a isso, a série nos conecta também com a enfermeira Kwon Young-ji (Park Boyoung), que luta para salvar seus pacientes enquanto lida com eventos estranhos no hospital.

Além do webtoon original 조명가게 (Shop of the Lamp, em tradução para o inglês), Full escreveu todos os episódios da série e divide a estrutura da produção em duas partes. A primeira metade dos 8 episódios tem maior foco no horror e no suspense, enquanto a segunda está mais interessada no drama. Além disso, um episódio central faz essa transição entre os gêneros com um plot twist que revela a verdadeira condição de seus personagens. O autor/roteirista se mostra confiante nessa divisão para fisgar o espectador pelo suspense e guiá-lo com doses de horror até entregar as respostas dos mistérios com desfechos de melodrama. A relação de Kim Hyun-min (Um Tae-goo) e Lee Ji-young (Kim Seol-hyun), primeiros personagens a aparecer, é uma das que melhor simboliza essas viradas de chave que a série tem. A presença fantasmagórica da atriz/cantora Seol-hyun é tratada como uma possível ameaça num primeiro momento até descobrirmos que seu arco dramático é guiado por culpa e uma busca desesperada por redenção.

Kim Hee-won, mais conhecido por sua carreira como ator, estreia na direção com surpreendente competência para um suposto iniciante no cargo e lida bem com as temáticas e gêneros da produção. Sua abordagem é sóbria na maior parte do tempo, sem apelar tanto para jump scares ou grandes exageros formais, buscando criar uma atmosfera fúnebre e confiando no trabalho dos atores. O elenco, este sim, se entrega aos excessos melodramáticos com mais facilidade, especialmente os jovens Shin Eun-soo e Kim Ki-hae com seus choros e reações desmedidas — e tem que ser assim. Em uma trama recheada de traumas, dores e desencontros, a dupla e todo o conjunto de atores entendem que a única forma de lidar com os problemas dos personagens é adotar uma condição de vítima e quase nenhum senso de si. À primeira vista, eles entendem que não há como se recuperar, se curar ou seguir em frente, e atuam como a “situação limite” exige.

Neste limite que o subtítulo brasileiro define bem como Entre a Vida e a Morte, o bairro escuro de Light Shop funciona mais como um local de reparação do que um cenário aterrorizante de fato. É semelhante à maneira que os cineastas brasileiros Vinícius Silva e Pedro Nishi tratam o bairro da Liberdade, de São Paulo, no curta-metragem documental Liberdade (2018). No filme brasileiro, a “iluminação” dos personagens deve se dar na realidade, através do enfrentamento das heranças e assombrações de um Brasil colonial, enquanto a série coreana oferece luz de um jeito mais literal (com lâmpadas da loja-título), mas dentro de um universo também infestado de espectros da sociedade coreana. Essa utilização de figuras fantasmagóricas como dispositivos de cura e reflexão aproximam as produções e revelam características mais singulares da obra de Kang Full.

Se o objetivo de Liberdade é encontrar um futuro para as dinâmicas migratórias do bairro paulista, Light Shop busca respostas sobre a vida e a morte em tragédias presentes na vida real. O naufrágio do navio Sewol, que vitimou centenas de adolescentes em 2014, por exemplo, é um evento recente e ainda muito presente no imaginário sul-coreano, sendo constantemente referenciado em obras populares do país. Ainda mais fresco na memória está agora a tragédia de Muan, o acidente aéreo mais mortal da história da Coreia do Sul, que ocorreu logo após o lançamento da série no fim de 2024. Mesmo que sejam fatalidades, esses eventos são relativamente frequentes e qualquer pessoa pode relacionar os desastres acima com episódios da sua própria realidade ou país. São aquele tipo de situação que pensamos “nunca acontecerá comigo, as chances são muito pequenas”, mas que não podemos controlar de fato. Light Shop examina esses sentimentos de fragilidade humana e de luto coletivo sul-coreano, colocando uma lente sobre as complexidades da dor, da culpa e da redenção para entregar uma experiência emocionalmente densa e expor que o espaço entre a vida e a morte pode ser menor do que pensamos.

Para assistir e ler 👇
“Liberdade” (2018), de Vinícius Silva e Pedro Nishi
“In the Absence” (2018), de Yi Seung-Jun
How the Sewol Sinking Changed South Korea — The Diplomat

Nota: ★★★★✰ (4 de 5 estrelas)

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